Testemunha da história 

Thiago Andrade

 

Descendentes de uma das famílias mais tradicionais do bairro São Luiz, Ilma Imhof Ulber, de 84 anos, foi espectadora ocular da história da evolução e mudanças ao longo do tempo dentro da comunidade.

 

Nascida e criada no bairro São Luiz, Ilma Imhof Ulber, bisneta de um dos primeiros imigrantes alemães de Brusque, acompanhou no decorrer do tempo as dificuldades e peculiaridades de se viver em uma época difícil, de muita pobreza e em condições de subsistência.

 

Numa carta, a pedido de um neto de nove anos, para um trabalho de escola, ela e o marido, Curt Ulber, sem saber, fizeram um relato histórico valioso, não só para a comunidade do São Luiz, mas para o município, de como e em que circunstâncias viveram. Uma descrição escrita à mão, no que ela chama de "redação da minha vida". A narração traz detalhes da rotina de grande parte da população brusquense no início do século XX.

 

A CARTA

 

(...) "Nasci no dia 21 de abril de 1926. Aos sete anos fui para a escola. No colégio das irmãs da Divina Providência. Não sabia ler nem escrever e quase não falava português. Fui criada nos costumes e linguagem alemães. Tudo muito complicado e primitivo.

 

Meu pai (Xavier Imhof) era pedreiro assalariado da Fábrica Renaux. Íamos (Ilma e os cinco irmãos) para a escola descalços, no inverno, era tudo muito dolorido (Ilma contou que chegava na escola com os pés sangrando, por causa da forte geada e estrada de barro e pedras). As geadas intensas e constantes congelavam tudo. Caminhávamos 2,5 km até chegar à igreja. Antes da aula tinha que assistir à missa, que era rezada em latim. No trajeto, entregávamos leite que minha mãe vendia para arranjar algum dinheiro. Também vendia ovos e manteiga (...).

 

Vivíamos muito precariamente. Os colchões eram de palha de milho desfiada. Os travesseiros e cobertas de pena de ganso e marreco. Tudo guardado e passado de um irmão para o outro. Na escola não havia caderno. Somente uma lousa e lápis de pedra, transportada numa sacola de pano. Lanche, uma fatia de pão de fubá, cará, batata doce e fermento, feito em casa, embrulhado num paninho, pois não havia papel.

 

Açúcar, meu pai plantava cana e levava no engenho para fazer o que se chamava de açúcar grosso (hoje é o que chamamos de mascavo). Mel de cana chamava melado. Pela nossa sobrevivência, plantávamos tudo: banana, aipim, batata-doce, milho, para fazer fubá, feijão, alho, cebola, couve, verduras, etc. Tudo conservado para sementes, para durar o ano inteiro. (...) Chocolates e balas, nem pensar. Meus irmãos e eu nunca tivemos festa de aniversário.

 

Na primeira comunhão, sim, era festa para a parentagem e amigos. Tínhamos que trabalhar na roça direto. Brincar só aos domingos e dias santos. Os feriados nacionais, meu pai aproveitava para limpar o pasto e as roças. (...) A carne comprávamos uma vez por semana por não existir geladeira. De vez em quando matávamos um porco, que criávamos. A carne e o toucinho era salgado e defumado para conservar. Tínhamos também criação de marreco, pato e galinha. Os tios tinham olaria tocada a água e fabricavam tijolos e telhas. Nessa reserva de água, transformada numa lagoa, nós pescávamos para sobrevivência.

 

Na adolescência frequentei a escola até a oitava série, pois não tinha até outro nível em nossa cidade. Formada na oitava série, gostava muito de matemática. Não gostava de geografia nem de história. ("Era muito difícil compreender. Sem livros, sem a mínima noção de divisas, do que era um município, um estado, uma capital, como íamos entender geografia"). (...)

 

Sempre tive vocação para comércio. Aos 17 anos fui trabalhar na loja Renaux. Vendia tecidos, calçados, perfumarias, rendas, chapéus, etc. Como balconista estava realizada. Sempre tinha novidades. Quando, raramente, tinha bailes, devíamos ir e mesmo assim acompanhada de mamãe. Em 1939 estourou a 2ª Guerra Mundial na Europa. Em 1942, Brasil se aliou aos Estados Unidos. Foi aí que a nossa pacata Santa Catarina foi lembrada e Brusque convocada, com 47 rapazes de diversas idades, que tinham cumprido o serviço militar. Entre eles, meu irmão, Mário Imhof e meu futuro marido (Curt Ulber)". 

 

ANDRADE, Thiago. O Município, Brusque, 12 de ago. 2010, Pé no Bairro, p. 8.

 

Nota: Kurt Ulber (*2.11.1922 +25.10.2006), casou em 13.03.1948 com Ilma Imhof. Nas certidões de nascimento, batismo e casamento, seu nome foi grafado "Kurt", sendo este o seu nome correto, enquanto que nos documentos militares, foi escrito "Curt".